O CIDADANIA E REFLEXÃO REPRODUZ O ARTIGO DO SITE "PRAGMATISMO POLÍTICO"
Por que o assassinato de um bebê indígena registrado
em vídeo passou despercebido pelos meios de comunicação brasileiros?
Criança foi atacada e teve a garganta cortada enquanto mamava no colo da
mãe. Morte do pequeno Vítor diz muito sobre como o Brasil cuida de seu
povo nativo
Câmara de segurança mostra homem aproximando-se da mãe, que amamentava a criança
Fernanda Cofre, Global Voices
Na tarde de 30 de Dezembro, uma mulher da etnia Caingangue amamentava
o filho de dois anos, sentada numa calçada junto à central rodoviária
da cidade de Imbituba, no Estado de Santa Catarina.
Eles tinham dormido naquele local juntamente com um grupo de indígenas
após terem efetuado uma viagem de ônibus que durou oito horas, desde
Chapecó até Imbituba, onde vendem artesanato.
No estado de Santa Catarina, o fim do ano é a época em que as praias
famosas ficam cheias de turistas vindos de outras partes do país e do
exterior como Uruguai e Argentina. O povo indígena vê neste fluxo de
visitantes uma oportunidade para vender artesanato e gerar alguma
receita. As estações rodoviárias ficam cheias de artesãos, que passam
ali a noite para estarem mais perto dos clientes que chegam de ônibus.
A jovem mãe segurava o seu bebê encostada ao muro quando um desconhecido se aproximou deles. Imagens da câmera de segurança mostram o homem a aproximar-se.
Ele primeiro tocou na face do menino Vítor Pinto e depois, com uma
pequena lâmina, desferiu um golpe cortando a garganta da criança,
fugindo logo de seguida. A mãe, desesperada, gritou por ajuda, mas o
pequeno Vítor acabaria por morrer. Tinha apenas dois anos.
Este crime horrendo de uma criança, assassinada a sangue-frio, nos
braços da mãe e em plena luz do dia não ocupou as manchetes da imprensa
nacional. Apenas alguns jornais deram a notícia, de forma discreta. A
jornalista Eliane Brum, opina sobre o caso no jornal espanhol El País:
Se fosse meu filho, ou de qualquer mulher branca de classe média,
assassinado nessas circunstâncias, haveria manchetes, haveria
especialistas analisando a violência, haveria choro e haveria
solidariedade. E talvez houvesse até velas e flores no chão da estação
rodoviária, como nas vítimas de terrorismo em Paris. Mas Vitor era um
índio. Um bebê, mas indígena. Pequeno, mas indígena. Vítima, mas
indígena. Assassinado, mas indígena. Perfurado, mas indígena. Esse “mas”
é o assassino oculto. Esse “mas” é serial killer.
Quais as vidas que têm mais importância?
Desde que a América Latina se tornou um “negócio europeu” — como
afirmou o jornalista Eduardo Galeano — a vida indígena sempre foi a mais
barata do continente. Não é novidade, “o racismo sobre o povo indígena é
histórico”, sublinha o professor Waldir Rampinelli numa entrevista à
Rádio Campeche logo após a morte do pequeno Vítor.
Assim que a gente se tornou independente, para os indígenas nada
mudou […] Esse preconceito contra os indígenas chega até os dias de
hoje. Tanto é que matar um indígena na rodoviária de Imbituba,
aparentemente, é um crime muito menor do que matar uma criança branca
numa rodoviária de Florianópolis.
Elaine Tavares, uma jornalista a viver em Santa Catarina, refere que
quando os exploradores Espanhóis e Portugueses chegaram à América
Latina, os povos indígenas foram denominados como “não-humanos, cidadãos
de segunda classe, sem almas, inúteis”.
Ao longo de todos esses séculos foi sendo construída uma imagem
negativa do indígena, justamente para que pudesse ser justificada a
invasão e o roubo de suas terras e riquezas. Os índios são vistos como
um entrave, uma lembrança desconfortável do massacre. Por isso que o
melhor acaba sendo confiná-los em alguma “reserva” longe dos olhos das
gentes. Mas, se eles decidem sair e dividir a vida no mundo branco, aí a
coisa fica feia.
No Estado de Mato Grosso do Sul, cerca de 300 índios foram mortos em conflitos fundiários, no passado recente. Muitos lideres indígenas tentam chamar a atenção para o que eles chamam de um “genocídio”,
que está a acontecer no país, realizado por milícias organizadas. Muito
pouco tem sido feito sobre esta matéria. Os suicídios também têm sido
uma constante, sobretudo na etnia Guarani-Kaiowá. De acordo com o New York Times, os suicídios entre a etnia é 12 vezes maior do que a média nacional.
Direito à terra
Em todo o país, o povo indígena luta para obter a devida demarcação e
reconhecimento das suas terras, de acordo com as diferenças regionais
de Estado para Estado. Muitos vivem nas ruas ou acampam ao lado das
rodovias construídas sobre as suas terras. O Governo de Dilma Roussef
tem o pior registo de demarcação de terras dos últimos 30 anos.
O Congresso está na iminência de aprovar uma emenda constitucional
que altera a forma como a demarcação de terras é efetuada. Se aprovada,
a PEC 215 vai
transferir a decisão final da demarcação e propriedade de terra
indígena do poder executivo para o legislativo. A medida vai colocar a
palavra final nas mãos do Congresso e no lobby dos grandes produtores
agrícolas — ruralistas.
Entretanto, as disputas de terra continuam a ser fomentadas. Em novembro, uma reserva em Florianópolis foi invadida pelo
antigo proprietário que não aceitou o montante pago para devolver as
terras para os povos indígenas. Um mês antes da invasão, um juiz decidiu
contra o homem, com base em que ele sabia que se tratavam de terras
indígenas quando comprou a propriedade. A chefe da aldeia, Kerexu
Yxapyry — também conhecida por Eunice Antunes — já havia denunciado as ameaças de morte e perseguição de que tem sido alvo (antes da invasão) mas nenhuma ação foi tomada.
O assassino de Vitor
Dois dias depois do assassinato, o suspeito de 23 anos entregou-se à
polícia e confessou o crime. Decidiu entregar-se por temer pela própria
vida, mas, até ao momento não apresentou o motivo pelo crime. Relatos da
polícia dão conta que o autor do crime possa sofrer de perturbações
psicológicas.
Mas se não há muito para dizer sobre o assassino, a morte de Vítor
diz muito sobre como o Brasil cuida o seu povo nativo, Eliane Brum
comenta que:
Quem continua morrendo de assassinato no Brasil, em sua maioria,
são os negros, os pobres e os índios. […] Estamos nus. E nossa imagem é
horrenda. Ela suja de sangue o pequeno corpo de Vitor por quem tão
poucos choraram.